Texto elaborado por Tito Rosemberg, em 1998, para uma palestra que fez na 1ª Feira do Sportswear em São Paulo e que a cada ano que passa, mais atemporal fica.
Temos que incorporar ao inconsciente coletivo a noção de que sem preservação não há solução. Sem planejamento não há futuro! E não há porque dropar numa enorme onda caixote, porque com certeza a viagem será curta. E nessa perspectiva, temos muito a aprender com nossas origens surfísticas, onde nos acostumamos a valorizar o prazer e o bem estar como partes fundamentais para uma vida sadia.
A cultura dos surfistas no Brasil também sofreu as influências maléficas deste imediatismo materialista. A agressividade e a voracidade dos surfistas brasileiros está hoje famosa no mundo inteiro.
É preciso com urgência resgatar a prática do surf como uma experiência cósmica de interação entre a criatura e o criador, entre o ser humano e a natureza, para que a paz volte a reinar nas ondas e nos corações dos que delas fazem seu templo. É chegado o tempo da participação individual nos problemas coletivos, e os surfistas serão os prejudicados imediatos com a degradação do meio ambiente e com o declínio da qualidade de vida. Não há mais espaço para os alienados, o momento é de engajamento, e principalmente espiritual.
A cultura do surf já está bastante difundida para permitir que os surfistas assumam o papel de líderes no aprimoramento da nossa sociedade. O que não falta é embasamento filosófico. Por sua própria vivência, os surfistas aprendem a respeitar e conviver com a natureza, sem explora-la mas sim aproveitando o que esta oferece sem custo algum.
Ao colocarem suas vidas nas mãos da natureza, os surfistas podem percebe-la não como uma ameaça, mas como uma amiga, uma parceira. Integrados ao meio líquido em movimento, estabelecemos empiricamente uma comunhão divina, com o genuíno, o puro, com a simplicidade sofisticada dos movimentos do mar, com o cósmico.
De pé em sua prancha, o surfista deixa de ser o homem racional manipulando as forças naturais, passando a ser, ele mesmo parte integrante desta mesma natureza que o recebe sem rejeição alguma. Nesta interface entre o ser humano e o mar, não o poluímos, não o consumimos, não o privatizamos, podendo simplesmente desfrutar, ainda que de forma fugaz, desta reciclável e infindável graça divina. O conceito de cósmico deixa de ser puramente teórico e torna-se realidade no ato de deslizar ao sabor dos caprichos do mar. Desta forma deixamos de ser meros observadores do mundo natural, e passamos a ser natureza.
No seu cotidiano descomplicado, o surfista tem a chance de desprezar todo o apelo consumista dos meios de comunicação e encontrar a paz na simplicidade. O mar não diferencia entre os ricos e pobres. Uma prancha cara funciona tão bem quanto uma outra mais barata, um velho calção nacional cumpre sua função tão bem quanto um novo importado. O mar não discrimina entre o inteligente e o bronco, pois aos dois oferece as mesmas oportunidades, que ambos tem condições iguais de aproveitar, principalmente porque para ser um bom surfista basta estar conectado com o instinto, e não com o intelecto.
Por sua prática, o surfista pode ser visto não somente como esportista, mas também como artista, bailarino, poeta, escultor, desenhista ou ecologista. Sua vivência é rica porque é única, pois nunca ninguém poderá surfar a mesma onda duas vezes. Daí vem a consciência do finito, do efêmero, através da oportunidade única que nos é oferecida quando, depois de centenas de horas percorrendo as lonjuras oceânicas, as ondas chegam ao litoral e se oferecem, segundos antes de morrer na praia, aos seus amantes. E nesta relação amorosa não há espaço para posse, esperteza, mentira, decepção, engodo, soberba ou arrogância.
Ninguém jamais poderá ser maquiavélico com as expressões do mundo natural, como também nunca uma onda poderá ser capturada, domesticada, comercializada. Não há como poluir esta relação mágica entre um ser e as forças incontroláveis da natureza. Na fração de minuto em que esta relação amorosa se desenvolve, não há espaço para o intelecto, e somos comandados pela nossa intuição mais primária, bypassando os sofisticados e perigosos artifícios do cérebro, podendo ser visto como uma forma ativa de meditação zen, uma aula de humildade, o reconhecimento de nossa pequenez diante do poder da natureza.
A contribuição dos surfistas para as sociedade é portanto inestimável, como a de tantos outros seres, e não pode ser restrita aos guetos esportivos e competitivos. Deve ser valorizada em sua expressão de espontaneidade, do retorno da espécie humana à comunhão com suas origens naturais.
E num mundo cada vez mais prático, o surfista com sua formação eclética e polivalente tem uma vantagem sobre aqueles que optaram pelo aprendizado exclusivamente teórico, formal. Hoje já se sabe que um dos maiores males que assolam o planeta é o culto à especialização, que segmenta o cérebro das pessoas para cumprirem uma determinada função, como se fossem robôs. Aliás, com a entrada destes no mundo produtivo, vê-se que aos humanos resta agora as tarefas de pensar, de criar e de amar, o que um computador ou máquina jamais poderá fazer.
Podem e devem também, os surfistas, assumir a vanguarda da luta contra o consumismo exagerado, que aliena o prazer e corrompe a alma. O surfista sabe que para atingir a satisfação plena, bastam pouquíssimos elementos. Nossa sociedade está calcada na premissa de que para sentir prazer e emoções "verdadeiras" temos que possuir e consumir, enquanto que, para atingir a plenitude de seu estilo de vida o surfista precisa apenas adotar a simplicidade voluntária, um dos conceitos mais pertinentes que conhecemos. Sabemos como é difícil resistir à lavagem cerebral difundida através dos meios de comunicação.
A publicidade tem conseguido levar pessoas que tem tudo para serem felizes a se sentirem insatisfeitas por não possuírem o novo modelo de forno micro ondas, ou um tipo de sapato qualquer. Em vista disso, o prazer alcançado pelo surfista no ato de deslizar sob as ondas torna-se revolucionário, pois mostra de maneira inequívoca a possibilidade da realização pessoal sem necessidade de comprar alguma coisa em algum dos shopping centers da vida.
Precisamos voltar a ver a beleza das coisas simples, a importância do conhecimento empírico, a inteligência da vida frugal e a idiotice da ostentação. Somos quem somos, e não o que possuímos! No limiar do terceiro milênio, temos que valorizar o conhecimento informal, a intuição e o instinto.
Precisamos prestar mais atenção no que dizem as folhas no chão da floresta, e menos no que dizem os mofados conceitos nos compêndios científicos dos bancos escolares. É chegada a hora de admitir que não podemos continuar pensando que conseguiremos reconstruir um outro planeta "ideal", sem problemas, mas sim que temos que aprender a entender, respeitar e conviver com a sabedoria divina que está espalhada pelos quatro cantos de nossa Nave Terra.
Não somos o centro do universo, nem a nós estão destinadas, com exclusividade, todas as coisas dele. Na verdade, nada mais somos do que parte integrante, e inseparável, desta pródiga natureza que nos veste, alimenta, protege e cura. E contra o medo da morte, que nos paralisa e enlouquece desde que habitávamos as cavernas, melhor do que nos considerarmos deuses e senhores do Olimpo, é aceitar que o mais importante é a viagem e não o rumo.
Não joguemos fora os melhores anos de nossas vidas correndo atrás de brinquedos e joguinhos mentais, tão falsos quanto inúteis, disputando quando poderíamos estar agregando. E aos que conseguirem cair na realidade antes de tornarem-se projetos fracassados, velhos ranzinzas e frustrados, só posso desejar-lhes uma boa viagem rumo ao próximo milênio, em paz com a natureza, pois somente dentro dela encontraremos a verdadeira vida em harmonia.
Por Tito Rosemberg.