O Ato Final - Uma pequena homenagem a um grande e belo filme.

O Ato Final - Uma pequena homenagem a um grande e belo filme.

Por Christina Thedim

Uma pequena homenagem a um grande e belo filme, que nada tem a ver com essa estória.

Num lance comum, corriqueiro, pegou o plástico onde ficava guardado o fumo. Ao abri-lo, constatou a incômoda presença de algumas formigas que, talvez, à procura de alimentação, acabaram presas no pacote.

Assim que se viram descobertas, a primeira reação foi fugir, imediatamente, mas _ e isto pode ser observado sem a menor sombra de dúvida _ não de maneira desatinada, catártica, como de costume. Pareciam em perfeita sintonia com a sua mente, seu pensamento: chegar o plástico mais perto do livro, para que saíssem tranqüilas, encontrando um chão sob seus diminutos pezinhos.

Não era esse um cuidado habitual. Na realidade, não suportava mais a exagerada convivência que lhes impunham, invadindo e fazendo moradia nos seus vasos de plantas, sugando-lhes a matéria orgânica de que necessitavam para manter o viço. No reino animal, em geral, os insetos não contavam com a sua simpatia. Sempre os detestou, tratando-os com desmedida e pavorosa crueldade.

Tinha como certo que o analisavam naquele instante; com seus minúsculos olhinhos a vigiar-lhe, firmes, na expectativa de liberdade.

Tão logo aproximou a borda da página do I Ching que se referia ao Ch’ien  _ o Criativo _ num movimento único, coordenado, como se obedecessem a um comando tácito, saíram de forma rápida e aparentemente inteligente, deixando-lhe a impressão de uma atitude tomada com total consciência. Perigosa palavra essa em se tratando de formigas, mas a mais exata para a situação. Não, não era conseqüência do fumo. Acabara de se levantar, e não havia ainda tomado seu café. Apenas tinha aberto o pacote para verificar o efeito do sereno na erva, coisa que, todo adepto sabe, faz melhorar em muito a sua consistência. Portanto, não tinha fumado nada, nem um baseadinho sequer. Jamais fumava antes do desjejum.

O dia amanhecera cinzento, cheirando a chuva, e a temperatura era amena; um dia diferente dos sempre tão ensolarados e tórridos dias tropicais. Mas, nem por isso menos convidativo a entregar-se aos caprichos da dada vida.

Tomou o ônibus carregado de gente e desceu para o centro, onde faria umas compras. Apesar do aperto, aqueles rostos _ máscaras rígidas, sem nenhuma esperança _ sobrepostos aos ombros encabidados, se faziam notar, com seus tóraxes aniquilados e suas expressões de ausência e cansaço. Transmitiam uma desagradável sensação de automatismo e morte. Lembrou-se, sem saber por que, das formigas. Organizadas, pareciam saber o que queriam.

O fumo havia ficado no mesmo lugar de sempre, só que, desta vez, deixara o plástico bem vedado, usando e abusando da sua auto-aderência. Um amigo, que havia chegado de Cabrobó, em Pernambuco, capital clássica da cannabis sativa, fizera-lhe esse carinho. Nenhum açúcar, nem mel, nada desses recursos apelativos que colocam no bagulho, com o descarado e inatingível objetivo de melhorar o aspecto, sempre caído, das “coisas” do asfalto. O único atrativo que sobrara para as intrusas era o famoso THC, componente que, através da inibição da glicose no sangue, provoca o tão desejado “barato”. O cérebro, estimulado pelas ondas alfa, trabalha mais o seu lado direito, normalmente esquecido pelo ritmo de vida moderno e materialista. Concentram-se nesse hemisfério, especificamente, as manifestações arquetípicas, simbólicas de uma parte de nossa personalidade, que levam a estágios e valores de consciência tão reais e importantes como os que privilegiadamente comandam nossas mundanas expectativas. Tinha que saltar no próximo ponto. Não fosse a brusca freada, que o despertara de seus pensamentos, e o teria passado. O difícil mesmo era conseguir chegar lá na frente a tempo, tal a quantidade de corpos que deveria atravessar. Mas cumpriu submisso o seu destino e, finalmente, desceu onde queria.

O sol já ensaiava sua despedida por detrás dos montes, mesmo que grossas nuvens impedissem, sem perdão, o suave prazer de seus raios dourados e mágicos. De fato, isso não tinha nenhuma importância, pois estava deverasmente satisfeito. Havia conseguido todas as tintas e papéis que necessitava para a produção de novas aquarelas, e isso era o que importava. Não dependia delas para sobreviver, se bem que até poderia, se assim o quisesse. Havia uma certa tendência a originalidade nos seus trabalhos, pelo menos, fora essa a opinião dos críticos na sua última exposição. Mas optara pelos computadores, sinônimos de modernidade e segurança no trabalho e no bolso.

Os gritos nervosos das crianças na praça, sob os olhares cuidadosos das mães e babás, soavam como música aos seus ouvidos. Cruzara por algumas, antes de chegar à portaria do antigo prédio onde morava. Pode perceber que o observavam com uma expressão de interesse e curiosidade. Conseguiu sentir-se, por eternas frações de tempo, esperançoso e feliz. Enquanto o elevador subia lentamente, sem pressa alguma de atingir seu mecânico objetivo, uma estranha e incômoda sensação invadia-lhe todos os corpos, contrariando qualquer possibilidade de lógica.

A impressão de que alguém, lá dentro, o aguardava, aumentou consideravelmente, acelerando de maneira arrítmica as batidas do seu coração, assim que parou frente à porta de entrada do apartamento. Chegou a ficar, por um longo espaço curto de tempo, apenas a escutar, tentando colocar um sentido qualquer em tudo aquilo. Após um minucioso exercício de perceptividade, resolveu entrar. Achava-se meio injuriado por tais obtusos sentimentos. Chegar em casa sempre fora um ato de satisfação, pois era possuído por uma aconchegante segurança, que o fazia esquecer da imensa agressividade do mundo lá fora. O problema, com toda certeza, era dele. Paranóia... Já ouvira muito sobre isso. Mas por quê? Porque se, aparentemente, tudo estava na mais perfeita ordem?! O fato de ser um solitário nunca lhe havia causado desconforto, simplesmente por ser uma opção. A grana entrava na medida certa, suprindo, sem erro, às suas necessidades. É verdade que, algumas vezes, ficava meio de saco cheio de tudo acontecer sempre tão dentro das expectativas. Mas não considerava isso um problema, pois logo se diluía, sem maiores danos. Chegou a pensar numa síndrome de mediocridade, o que não era, propriamente, exclusividade sua. Afinal, uma apatia generalizada tomava conta das relações humanas neste final de século e início de novo milênio.

Tudo corria dentro da mais absoluta normalidade, mas a angustiante sensação insistia em permanecer, tirando-lhe toda a paz.

Olhou para o chão da sala onde se encontravam, displicentemente dispostos, os seus mais recentes indícios de vida no plano da matéria. Livros, _ um não, mas dois copos: um já vazio, ainda cheirando a vinho, e outro de água, pela metade. O I Ching permanecia aberto na mesma página, onde, chegando a vista mais perto do papel, podia-se ler com clareza: “As nuvens passam, a chuva atua, e todos os seres individuais fluem para suas formas próprias”. Esse atributo do Criativo _ Yuan, a cabeça _ o mais importante, determina que, para o homem santo, ou sábio, as etapas do crescimento devem ocorrer de maneira clara e harmoniosa. O caminho do Criativo atua através da mutação e da transformação, de modo que cada coisa recebe sua natureza e destino verdadeiros”

Terminado o jantar, e tendo lavado todas as louças e panelas, como de hábito, achou de dar uns “tapinhas”. Assim que pegou o plástico, uma voz soou bem nítida aos seus ouvidos: “Nós não vamos sair agora”.

Soltou o paco no tapete amarelo e ficou a observá-lo com obstinada atenção.

Nada, nenhum movimento. Resolveu abri-lo e acabar de uma vez por todas com aquela paranóia.

_ Você não devia ter feito isso; agora, teremos que matá-lo.

Estavam todas lá, e nem tentavam disfarçar a terrível hostilidade nos olhares furiosos. Pensamentos de ódio, e palavras repletas de indignação eram captadas com total nitidez. Uma delas, a maior _ a chefona, certamente _ respondeu agressivamente à pergunta que crescia no peito e na mente do atônito observador.

_ Odiamos todas as malditas vezes que nos pisoteia, nos destruindo sem a menor piedade. Todas as vezes que nos esmaga, com seus tapas histéricos e arrogantes, quando, por simples descuido, subimos em teu corpo imundo. Vocês, humanos...

A comunicação se fazia dentro de um contexto surpreendente.

_ Jamais pensei que seres, aparentemente tão insignificantes, sentissem a morte com tamanha intensidade! Essa vida monótona e repetida de todos os dias, resumida nesse ir e vir sem fim, atrás de uma migalha, de uma esmola de minhas sobras.

_ Você é um animal mesquinho porque não usa o que lhe foi ofertado pela ordem das coisas, nem mesmo para obter uma vida mais digna e compensadora. Sua sensibilidade cristã nos comove a tal ponto, que não nos resta outra alternativa.

Inconcebível, o que sua mente, estarrecida, escutava.

_ Não adianta ficar se perguntando o por que de tudo isso. Já tomamos a nossa decisão. Pelo menos, temos a consideração comunicar-lhe antes, e não como faz conosco, sentando esse rabo sujo e desajeitado sobre nossas cabeças. Seu fio está por um triz.  

Podia parecer loucura, mas o aspecto geral da situação era, no mínimo, preocupante: um grupo de sete formigas, graúdas, e bem reais, o recebia sob veementes protestos e nada veladas ameaças.

Tentou disfarçar, distraindo-se com as páginas que passavam, aleatoriamente, ante seus olhos, agora ainda mais negros, refletindo a enorme escuridão em que se encontrava sua alma. Um suor incômodo começou a empapar as folhas de incontável sabedoria. As articulações enrijeciam-se, devido ao extremo nervosismo que lhe dominava as emoções. Fixou sua tensão num parágrafo, que dizia: “Por encarnar o amor, o homem superior é capaz de governar os homens. Por promover a cooperação entre tudo o que é belo, ele é capaz de unir a humanidade através dos costumes. Por favorecer a todos os seres, ele é capaz de conduzi-los a harmonia, através da justiça. Por permanecer perseverante e firme, ele é capaz de levar à cabo todas as suas ações”.

_ Melhor não tentar disfarçar. Infelizmente, esse seu jeito cínico e dissimulado de agir já nos é bastante familiar.

Agora era outra que lhe emitia tais pensamentos. A intensidade da raiva era tanta, que chegou a causar-lhe uma náusea incontrolável, seguida de imensa tonteira.

_ Não adianta. Não haverá clemência. Não passa de um viciado de merda, que acha que merece viver.

_ E será que poderiam me responder por que deveria morrer?!

_ Para os idiotas, até o mais imbecil dos fatos tem que ser explicado. É o caso dessa sua vida sem graça, nesse mundo doente, cheio de gente, entupido de carne. Zumbis de carne e osso, andando sem rumo, sem vontade, sem nada. Todos merecem a morte mas, você, foi o nosso escolhido.

Matá-las. Exterminá-las, simplesmente, era a única saída que lhe vinha à cabeça; a melhor forma de dar um fim a tanta arrogância e pretensão.

_ Nem pense nisso. Seria fatal. Ainda lhe resta um pouco de tempo. Não prefere entregar-se a pensamentos mais úteis? Se é que se pode assim dizer.

E se riram todas, num escárnio voluntário e chocante. Profundamente chocante.

_ Que tal meditar um pouco sobre as oportunidades que desperdiçou de tornar-se gente por não ter a coragem nem a hombridade necessárias para tanto? Pense seu otário, pois agora acabou-se o que nunca dantes fora doce. Estamos lhe fazendo esse derradeiro favor. Somos misericordiosas.

Pisoteou o pacote com alucinada ferocidade, esmagando todo e qualquer ponto preto que ousasse se movimentar, numa reação de insubordinação ao poder da ordem vigente.

Tentou acalmar-se. O cansaço e a tensão eram tão grandes que o fizeram cair no sono.

Passaram-se alguns dias até que o corpo fosse descoberto. Todos mostraram-se muito impressionados ao saber do estado em que fora encontrado: apenas o cérebro, intacto, ornamentado por uma carcaça desengonçada. Parecia obra de um especialista, tão bem executado que fora. Uma hipótese chegou a ser levantada, mas logo rechaçada pelos técnicos legistas, que a deram como totalmente absurda: que havia sido devorado por formigas. O caso virou manchete de jornal, com acentuado destaque nas páginas policiais. A rua saiu do anonimato, porque a televisão esteve lá, entrevistando moradores, para saber o que ninguém nunca soube explicar. E a ele _ o agora morto _ protagonista de tão inusitado episódio, coube servir generosamente a ciência, já que o corpo _ se é que se pode chamar aquilo de corpo _ não foi reclamado por nenhuma alma viva, tornando-se objeto de profundas análises e ponderações.

Chamou-me a atenção o fato de a polícia não ter feito nenhum alarde quanto a droga.

À noite, comenta-se na vizinhança, estranhos barulhos podem ser ouvidos, vindos do apartamento, como se gente por lá houvesse.

Ninguém, até o momento, ousou entrar para ver.

Christina Thedim

Christina Thedim

Christina Thedim "Tininha"