Localismo do Bem em Ipanema - Rio de Janeiro

Localismo do Bem em Ipanema - Rio de Janeiro

Fred d'Orey.

A decadência do Arpoador é a decadência do Rio. É a decadência do Brasil. É o nosso país indo pro ralo e levando tudo junto. As cidades ficando cada vez mais perigosas, as praias mais poluídas, as pessoas mais desesperadas.

Me lembro quando eu tinha uns 10 anos, de brincar a noite de polícia e ladrão no Arpoador, valendo a pedra toda. Eu e mais uns 20 moleques. A gente surfava de dia e brincava de noite. Não tinha perigo, não tinha violência. Trinta anos se passaram. Sentado nessas mesmas pedras com meu filho, contei isso a ele, que me olhou atônito. "Mas não tinha violência? Papa, você teve muita sorte", exclamou. Ele tem razão. Tive mesmo. O Arpex daqueles tempos era uma maravilha. E o Rio, e o Brasil, ainda não tinham virado a porcaria que virou. Mas não precisa ser nenhum gênio pra entender que já desde os tempos da carochinha estamos todos sentados bem em cima de uma bomba relógio.

Fácil de entender. O Brasil tem três tipos de gente. Os que saqueiam o Estado, os que assistem e acham que não é com eles, e os que não têm a mais vaga idéia do que se passa. Elite, classe média e povão. Enquanto isso o país afunda. Nada mais irritante do que aquela campanha imbecil chamada "Fome Zero". Ora, o Brasil precisa mesmo é de "Corrupção Zero". Quando a fortuna que a gente paga em impostos parar de aparecer na conta desses políticos safados, vai sobrar grana pra tudo que realmente precisamos. Educação, educação, educação. Saúde, saúde, saúde. Segurança, segurança, segurança. Isso tem que ser ensinado nas escolas. Isso tem que ser conversado em casa, na mesa do jantar, entre pais e filhos. Essa teria que ser a campanha do Governo. Mas não foi.

O Arpoador é o berço do surf no Brasil. Aliás, não só do surf como de toda cultura de praia. Desde a década de 50 que a galera já ficava largada naquelas areias. As pranchas de surf ainda não tinham aparecido mas neguinho surfava assim mesmo. De peito, segurando madeirinha, batendo pé de pato. De um jeito ou de outro malandrinho vinha lá de trás da pedra. Maior social, era o Posto 9 daqueles tempos. Azaração, troca de idéias, projetos. Artistas, gatinhas, diplomatas, vagabundos, atletas, bossa nova. Gente de várias nacionalidades. Um caldeirão. Quando a prancha de surf apareceu, a cidade percebeu que não só o Arpex era um pedaço de areia delicioso como também dava altas ondas. E assim ganhamos nossa grande arena, com os melhores surfistas da cidade e do país saindo das suas esquerdas.

E assim foi até o início dos anos 80, quando a cidade passou a viver o seu inferno astral. A política populista foi deixando o Rio cada vez mais abandonado e perigoso, e os cariocas aposentaram antigos hábitos, coisas simples, como o de frequentar uma praia gostosa tipo o Arpoador. Sempre um grande palco de eventos importantes, como os tradicionais Waymea 5000, nem os campeonatos apareciam mais. Sem gatinhas nem artistas, o Arpex assumiu sua nova encarnação com aposentados fazendo ginástica pela manhã e o pessoal do morro dominando o pico o dia inteiro. Perfeito. É na praia que o Rio se assume mais democrático mesmo.

Mas tem uma turma apaixonada por aquele lugar que não se conforma. Uma turma que se deprime quando o tal esvaziamento do Arpoador é mencionado. Que se angustia com a sua decadência. Pois bem, esses caras resolveram que o berço do surf brasileiro merecia um rack de pranchas. Era o mínimo. Detalhe importante. Esses caras têm entre 25 e 30 anos e fazem parte de uma geração de locais que ganhou respeito surfando. Geralmente são os melhores surfistas na água e nunca precisaram brigar ou juntar ninguém para serem respeitados.

Entre idéia e realização, a operação toda levou cinco meses, com muitas andanças pela burocracia da prefeitura. É só um rack de pranchas. Mas tá lá. Foi feito. E teve o mérito de unir asfalto e morro. Cada um entrou com o que pôde. Teve gente dando 5 reais, teve gente dando 200 reais. Teve gente que ajudou cavando. Teve gente que vigiou o material de noite. Outros trouxeram um lanche. O importante é que o rack tá lá. E todo mundo se orgulha dele. O Arpoador merece muito mais, mas já é um começo. É isso que eu chamo de localismo do bem. Retribuir nem que seja um pouquinho só o tanto de prazer que o pico te proporcionou, ao invés de querer aquilo só pra você. Se mais gente pensasse assim o Brasil seria um país alucinante. Tipo a Austrália.

Esse artigo só foi possível graças a iniciativa de Guilherme Morales, Rafael Cury, Leonel Brizola Neto e Bruno Coutinho- os idealizadores do rack. Sem falar no pessoal do morro e do asfalto que se uniu, que bancou e construiu. Vida longa ao rack.

Texto extraído do livro "Outras Ondas", autorizado por Fred d'Orey.

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