A gata mascotinha do Pier de Ipanema, Christine Niemeyer

Alexandre Franco Sandy.

Depois de se falar em Leila Diniz, dá a impressão de que o assunto gatas e felinas se esgotou, diante da beleza memorável da pantera Leila. Se existiram dois lugares em que o número de felinas por metro quadrado tinha concentração demográfica parecida com um Maracanã da década de 70, em dia de decisão de um Fla X Flu, fazendo-se aí um desconto dos acotovelamentos e do odor advindos de uma região acima dos cotovelos, as axilas, podemos dizer que eram Píer e Janga. Não necessariamente nesta ordem.

As gatas estavam por toda parte, no entanto, em época de aulas se concentravam, sobretudo, nestas duas instituições. Havia o Arpoador, o Bob’s, a Boate Papagaio, o Bom Jus (não só os naturebas o freqüentavam) e outros locais onde se podiam encontrar lindas “cocotinhas”, mas acabava sendo uma redundância, pois a tribo era aquela mesma. Nas férias escolares, havia deslocamentos bem definidos geograficamente: Itaúna, em Saquarema, Peró e Jeribá, no então distrito cabo-friense de Búzios.

Justiça seja feita: em Copacabana, Leblon e Icaraí também existiam as mais lindas gatas, com biquínis cuja quantidade de tecido não chegava a superar, em centímetros, a quantidade de gaze de um Band-aid. Mas nas férias, convergiam, não sei por que fenômeno social, para essas duas praias, filiais, no bom sentido, de Ipanema, sem bairrismos.

É claro que não me lembro do nome de todas as gatinhas, mas no Site, no Flash Back, reconheci inúmeras musas de quando, fedelho, as admirava, de longe e de perto, mas de forma platônica, porém nem tão inocentemente assim. A estética era um atributo das lindas gatas, cujos cabelos, de nascença, podiam até ser morenos, ruivos e, pasmem, loiros, mas, invariavelmente, se apresentavam douradamente lisos ou cacheados refletindo o sol do albor ao ocaso.

Se eu citar nomes, caio em dois equívocos desagradáveis: o de omitir alguém ou de mencionar alguém, na época ninfa desejável, mas que hoje, passados alguns anos, pode estar casada, comprometida, com filhos, o que seria um constrangimento para as respectivas famílias.

Citarei, no entanto, duas gatas que fizeram histórias distintas, porém marcantes. Uma é a própria metáfora da felina, do gênero racional, cujo pioneirismo na prática do topless foi imitado por várias outras felinas e pretensas gatas. Todas racionais! (Acho...) Ou tentando pertencer, sem sucesso, a esta categoria. Várias delas, na época e, mais tarde, reivindicaram serem pioneiras do Topless. Um modismo comum em Saint Tropez, mas inaugurado, no Brasil, de forma pública, nas areias de Ipanema, por uma jovenzinha, loira natural, que, como Leila, tinha a virtude de silenciar toda uma faixa de areia por onde passava. (Bardot tinha o hábito de não usar a parte de cima do hábito de banho, conhecido como biquíni, ou maiô de duas peças, em praias desertas, de Búzios, ainda na década de 60). A outra gata, esta irracional, (Acho...),tinha um instinto materno tão acirrado que acabou sendo primeira página de um jornal que tinha a maior circulação no Rio, O Dia. Chris, como toda criança de seus sete a oito anos, ia à praia usando apenas a parte de baixo do biquíni. Normalíssimo. Toda criança fazia assim, ia à praia com os pais, levava pazinha, baldinho, peneirinha e brincava na areia com os apetrechos necessários. Chris, caso levasse tais apetrechos, os escondia em algum ponto indecifrável. Ela adorava andar pela areia dura, úmida, onde o mar lhe molhava os pés. Ia da Montenegro ao Arpoador, voltava, às vezes chegava até à Garcia, mas nunca fui capaz de descobrir onde era exatamente o início e o fim de seus passeios freqüentes. Ela tinha uma personalidade tão segura e precoce, que não deu bola para, o que para as mulheres é algo hediondo, a passagem inexorável da cronologia, medida em dias, semanas, e torturantemente, para as peruas, em anos.

Mas, o que podia chamar minha atenção para uma menininha, mais jovem do que eu, que fazia seus passeios pela beira d’água? Ora, seria mais uma criança passeando. No entanto, não era! Para começar, já com a idade presumível entre sete, oito anos (nunca se deve dizer taxativamente, mesmo sendo uma criança, a idade certa de um ser do sexo feminino, isto ofende a todas as regras de relacionamento humano, imagino que até na Groenlândia) sua beleza era a de uma ninfa, cujos olhos da cor do mar, já prediziam que seriam o par de bilhas mais admirado de Ipanema, particularmente do Píer.  Como ela era linda! Inclementemente, (para as peruas) os anos foram passando e a pequena loirinha de olhos marinhos, às vezes celestes – de fato ela era um anjinho, assexuado inicialmente – foi crescendo, crescendo e, paulatinamente, seus contornos nos quadris começaram a chamar atenção, pelas curvas perfeitas, esteticamente falando, sem qualquer conotação sensual. À medida que a Mãe Natureza lhe desenvolvia fisiologicamente o corpo, Chris continuava ignorando solenemente a parte de cima do biquíni.  Da criancinha de corpinho reto, seu tórax era como uma mesa mirim de passar roupas, ela se transformou numa adolescente. Sabedora de sua condição de mocinha em desenvolvimento anatômico, continuou a dar seus passeios pela beira da água, trajando tão somente o biquíni e um boné (onde, especulo, ser onde guardava a grana para o picolé de chocolate da Kibon vespertino, ou o mate do Seu Mello, o De Gaulle), pois não havia outro pano suficientemente espaçoso ou eficaz para se assegurar da guarda do tesouro da guloseima refrescante. Não era sebosa, ou metida à gostosa, por causa disso. Pelo contrário, falava normalmente com os amigos e conhecidos, e, a cada aceno, era um festival de sussurros: “Nossa, que menina linda...” Ela, ao contrário de suas co-etárias, não usava sequer uma pequena bolsinha, mais um detalhe que chamava a atenção. A gatinha se desenvolveu, suas formas ficaram perfeitas e, para coroar este conjunto de curvas tão bem esmerado pela genética, ela foi aquinhoada com um sorriso tão puro e belo que, quando acionava os risórios de Santorini, exibia um lindo teclado alvíssimo, sem os sustenidos, claro! Uma pintura de Rafael, ao vivo, onde o belo e o estético sobrepujavam qualquer apelo de desejo carnal.

Enfim, tornou-se mulher, em idade, um dos mais bonitos espécimes deste gênero que jamais vi, a não ser quando a flagrava passeando, de forma idêntica, pela beira da água de Itaúna ou no Peró. Já agora, uma quase adulta, mas com as covinhas discretas de quando sorria, continuava sendo uma beldade que, mesmo com os seios à mostra, nunca deu a impressão de expô-los por exibicionismo reles e vil.

Antes que eu vá para o Céu dos bebuns, caso eu vá para lá, se alguém me perguntar se eu já vi um anjo, certamente a resposta será afirmativa.

“Sim, já vi um anjo, louro, lindo, de olhos azuis, semi-desnudo, com um lindo sorriso, covinhas nas bochechas, que certa vez me cumprimentou, numa festinha na Lagoa, com um simpático OI, sem nunca ter sabido meu nome. Que anjo é este? Ora, a Chris Niemeyer”. É uma das mais belas lembranças que tenho do Píer.

É sabido que o instinto materno é capaz de dotar a mãe, seja de que espécie for, de uma coragem sem fronteiras para defender sua cria, sua prole. Estamos falando de gatas, felinas. Já vi muitas gatinhas, bípedes racionais, chegarem às raias da irracionalidade quando enfurecidas para defender seus filhos. Esta gata a que me refiro agora era, de fato, irracional (???), isto é, era uma gata de telhado, um felino quadrúpede de tez bege, ligeiramente tigrada ao longo do corpo magro, de porte médio. Nem grande, nem pequena. Na época em que o Jangadeiro funcionou na Teixeira de Melo 20, na quadra (que isso, Sandy, estamos em Ipanema, não em Brasília), digo, no quarteirão da praia, a menos de quinhentos metros do Píer, uma república democrática fronteiriça, uma gata de rua – vira-latas é adjetivo pra cachorro de rua ou sem raça – adotou o Jangadeiro como seu lar.

Gatos, ao contrário dos cães, escolhem seus donos e, por isso, suas casas, onde vão morar. Genoveva adotou o Jangadeiro, suponho, pelo bom acolhimento que encontrou pela equipe de empregados, especialmente pelo garçom Ratinho, Seu Almeida, o português mais carioca que conheci, que lhe dava leite todas as manhãs. Já naquela época não era permitido pela Saúde Pública que houvesse animais de estimação em casas comerciais onde fossem produzidos alimentos. Só que Genoveva não leu esta lei ou postura, e adotou uma postura totalmente refratária a leis e posturas. Ela adotara o Jangadeiro para morar, e ponto final. Do nosso ponto de vista, como donos do estabelecimento e havendo lido as leis e posturas, vacinamos a gata Genoveva e adotamos também uma postura do argumento de que era muito melhor pagar uma multa por ter uma gata na casa, do que ter roedores onde se manipulava alimentos. Os ratos, por mais que se desratize um local com cozinha industrial, depósitos, despensas e restos de comida caindo das latas de lixo, por mais que se as tampem, não chegam aos restaurantes a convite dos donos, que os detestam tanto ou mais que os freqüentadores. Eles aparecem nos sacos de batatas com sessenta quilos, vindos do Ceasa, nos engradados de bebida, que são entregues diariamente. Isto torna o controle quase inviável. Portanto, a presença de um felino de quatro patas, sobretudo uma fêmea, é garantia de que não haverá roedores intrusos.

Genoveva era mansa, de boa índole, gentil com os fregueses que a afagavam, adorava um colinho, uma lady. E continuou tendo este temperamento até que teve a primeira cria. Nunca molestou um freqüentador, vizinho, empregado, adorava crianças (o que não é muito comum) e mantinha o Janga desratizado como retribuição pelo lar que arrumara. Quando paria, o fazia nos mais recônditos esconderijos, acessíveis apenas ao garçom Ratinho e ao gerente Santos, que achavam os ninhos nos píncaros dos cinco sótãos da casa quase centenária à época.
Ela só tinha uma bronca: cães! Não importava o porte, a raça, se tinha pedigrée, de quem eram. Ela não os tolerava, mesmo que passassem do outro lado da calçada, onde outrora se situava a murada do Colégio Orlando Roças.

Naquela época, já no final da década de 70 e início da de 80, ainda não havia leis que obrigavam o uso de mordaças e guias para raças consideradas perigosas, de alguns cães de grande porte, como dinamarqueses, pastores belgas e alemães, dobermanns, rotweillers e tantos outros. Era comum os donos passearem com seus cães, sem guia, sem mordaça, pois era, de fato treinados para obedecer a uma voz de comando dos proprietários. Nesta época também, não se falava em “pit-boys”, pelo simples fato de que não havia eclodido o modismo. Existiam, sim, mas não com este pejorativo apelido.
Nunca houve, desde a época de meu avô, Victor, alguma restrição quanto à entrada de cães no âmbito do restaurante. Meu avô era europeu e lá era muito comum os donos levarem seus cães para passear e, na volta, tomar um chope, beliscando um tira-gosto que, invariavelmente, era dividido com o totó.

Genoveva, resignadamente, tolerava tudo isto, cães entrando no restaurante, sentando-se junto a seus donos, com uma condição: a de que não latissem. Cachorro latia, ela voava em cima e expulsava o barulhento freguês, independentemente, do tamanho do bicho e dos apelos de seu dono garantido que o cachorro era ensinado, não mordia, não fazia mal a uma mosca sequer, etc.. Ela não aceitava este tipo de argumento. Cachorro podia entrar e comer, tranquilamente, lingüiça calabresa com mostarda escura, só não podia emitir ruído. Se latisse, entrava na porrada de forma humilhante! Inclemente, ela não perdoava suas vítimas e as colocava para correr, literalmente. Várias vezes tivemos que arcar com o prejuízo de um “trambique” involuntário do proprietário do cão.

Sabedores deste temperamento anti-acústico de Genoveva, quando um dono se aproximava do restaurante com seu cão, os garçons que serviam as mesas da varanda de baixo o alertavam de que havia uma gata que não gostava de cães. Alguns acatavam o conselho para levarem seus cães para casa, para retornarem ao sagrado chope da “happy hour”, outros, fazendo ouvidos de mercador, adentravam no bar e pediam suas bebidas e salgadinhos, alguns pediam sanduíche de filet mignon, dividiam-no com seus animais de estimação e nada acontecia, pois os cães não emitiam ruído. Outros, não acreditando nos conselhos prudentes dos empregados e freqüentadores mais assíduos, tinham seus cães cobertos de unhadas, arranhões (já tivemos também que arcar com a conta de veterinários de alguns donos mais exigentes, mesmo tendo sido devidamente alertados).
Eu presenciei Genoveva enfiando a porrada num pastor belga enorme, da frente da varanda do bar até a esquina da Vieira Souto, com o dono, um rapaz de porte atlético, de uns quase dois metros de altura, gritando: “Socorro, estão massacrando, dilacerando a pele de meu cão”. Desta vez o rapagão foi à 13ª DP, apresentou queixa, fomos visitados por um camburão, a gata foi exibida aos soldados, e um deles, olhando para a gata e para seu superior na viatura, perguntou: “ Sargento, algemamos o gato agressor, ou o colocamos na caçamba?”. A queixa não prosseguiu.
Porém teve uma que deu o que falar. Eu estava em Brasília, onde estudava, e recebo, dentre as correspondências enviadas pela família, a primeira página inteira do jornal O Dia, com a manchete bem sensacionalista: “GATA MANSA DEFENDE RABO À UNHA”. Uma foto estampava o garçom Ratinho, acariciando Genoveva com a mão direita, apoiando seu corpo no antebraço esquerdo. No lead da foto: Ratinho e a gata  Genoveva: agressora ou vítima?”.

Li atento à reportagem, na íntegra. Uma freqüentadora conhecida da casa, depois de uns goles a mais, encontrou Genoveva, quietinha, sob uma mesa que dava acesso ao banheiro feminino do segundo andar. A freguesa, querendo “fazer amizade” com a bichana, caiu na besteira de imitar um latido de cachorro. Genoveva sabia diferenciar um ser humano de um cachorro. A freguesa fora avisada pelo garçom do salão superior que aquela brincadeira poderia ser perigosa. Não acreditando no alerta, aí ela começou a latir mesmo, imitando tanto quanto o porre lhe tornasse possível um cão latindo e rosnando, simultaneamente.

Tiveram que levar a freguesa para o Miguel Couto, para ser suturada na face e testa. Ouve ocorrência de lesão corporal, já que ela fora atendida em hospital público. Depois disso, a freguesa foi à 14ª DP, pois fazia questão de exame de corpo delito. Quando o delegado de plantão lhe explicou que o bar em questão fazia parte da jurisdição da 13ª, em Copacabana, parece que os ânimos se acalmaram, o porre diminuiu de intensidade, e ela acabou indo pra casa. No dia seguinte, seu advogado estava no restaurante para pedir indenização. Ele viu a gata e soube da história verdadeira. O ocorrido tinha sido numa noite de sábado, casa cheia, não faltaram testemunhas oculares e auriculares. O causídico, suponho, deve ter cobrado os honorários de sua cliente e a imitadora de cachorros jamais pisou no Janga, pelo que eu tenha notícias.

De férias de minha faculdade candanga, entre 80 e 82, tomando banho de cultura na capital cultural do Brasil – Ipanema, com bairrismo - num sábado á tarde, por volta das 17:00 horas fui ao Janga para refrescar a sedenta serpentina. Pelo horário e por ser sábado, o salão de cima estava funcionando e eu sabia estar vazio. Portanto, podia beber tranquilamente minha mineral com gás e muito gelo, para depois engatar no whisky. Seguindo a máxima de Paulo Francis de que intelectual não vai à praia, intelectual bebe, escutei de um professor de Estudos de Problemas Brasileiros ou de Sociologia que eu e mais um por cento da população tupiniquim, fazíamos parte de um grupo muito pequeno e restrito de brasileiros que tinham acesso à faculdade. Como estava no meu segundo curso superior, minha bestice, imodéstia e orgulho me fizeram acreditar que, fazendo parte desta minoria, era um intelectual. Portanto levei um livro para o Janga. Eu adorava e ainda adoro ler, mas daí a ser um intelectual havia muita distância. Eu não era intelectual porcaria nenhuma, não era engajado em movimentos políticos, embora não concordasse com o regime de exceção (o que já era suficiente para ser taxado de comuna), eu achava que era intelectualizado, pelo menos para aproveitar o pretexto de beber ao invés de ir à praia. Já nesta época o Píer havia se transfigurado e eu sabia que não veria o anjinho de olhos da cor do céu desfilando de topless pela beira da água. Portanto fui praticar meu segundo esporte favorito, ler algo leve, algum livro de curiosidades matemáticas, tomando whisky, na varanda de cima, num sábado em que eu sabia que não encontraria a “repressão” por lá, meu pai, que não simpatizava muito com meu hábito de beber e muito menos de pensar que eu pudesse ser um “comuna” de carteirinha.
A varanda ainda não tinha sido arrumada do movimento do almoço, então me sentei a uma mesa em que os ventiladores de teto, convergindo nela, proporcionavam uma leve brisa do mar ipanemense. Pedi minha água com gás, um balde com gelo e uma garrafa de whisky e comecei, tranquilamente, minha leitura. Só eu estava sentado a uma mesa do salão do sobrado. Observei de soslaio que Genoveva, a uma distância de quatro ou cinco mesas, na direção do banheiro feminino, à minha esquerda, portanto, me observava com uma postura filosófica, como se minha leitura a estivesse entretendo por osmose ou telepatia. Ela tinha mania de pedir carinho enroscando-se nas canelas das pessoas de quem gostava. Fez este gesto comigo, recebeu o carinho que desejava e voltou ao seu posto, em direção ao banheiro feminino, justamente sob a mesma mesa em que arranhara há um ano a imitadora de cães. Esta predileção por aquela mesa tinha explicação: sua cria estava justamente no sótão, cuja escada se situava bem à frente da tal mesinha. Meia garrafa de água, quatro a cinco doses de whisky e umas tantas páginas do livro decorreram, até que ouvi ruídos de passos subindo a escada que dava acesso ao segundo andar. O garçom, muito solícito, aguardava ao final da escada a chegada de clientela da happy hour. Quando terminaram de subir, me arrepiei todo.

Três senhoras, muito bem vestidas, com ares de avós e tias-avós, com seus quatro netinhos, também muito bem vestidos, deram entrada no salão do sobrado, sendo que uma delas portava no colo um yorkshire terrier, com coleira metálica dourada ao pescoço, lacinho verde com laço na cabeça, prendendo-lhe os pelos como um penteado de neném, enfim um cachorrinho de madame. Assim que o garçom viu o que estava no colo de uma dessas senhoras, advertiu-as de que havia uma gata cujo gosto por cães era discutível. Ela não gostava de cães ruidosos e que acabara de ter cria. Ele não tinha visto Genoveva. Eu, sim.

Assim que a família se acomodou a duas mesas de distância de onde eu estava, só que ao meu lado direito, levantei-me e fui alerta-las, mesmo tendo ouvido o garçom ter feito o aviso. A que parecia ser a dona do cãozinho e a chefe daquela família, me disse já ter sido alertada três vezes, ainda no salão térreo. Dois garçons e o gerente Santos haviam feito o mesmo discurso preventivo, avisando da existência de uma gata recém parida que não simpatizava com cachorros. Esta mesma senhora me garantiu que o cachorrinho era manso, e que ficaria no colo de uma delas o tempo todo que levariam para tomar sorvetes. Não haveria perigo algum, asseverou, com tom ligeiramente irritado e autoritário. Diante desses argumentos, me apresentei como sendo um dos proprietários do estabelecimento e que, a partir daquele momento, a casa não se responsbilizaria pelo que viesse a acontecer. A senhora agradeceu pelo alerta e pela minha boa educação e assumiu, inteiramente, a responsabilidade pelo que poderia acontecer, já que , segundo ela, nada iria acontecer.
De fato o pequeno terrier se comportou de maneira exemplar, sempre no colo de uma das senhoras, até que uma delas teve necessidade de ir ao sanitário feminino. A ida foi calma. na volta à mesa, porém, o cachorrinho se desgarrou do colo da que o segurava e foi de encontro à dona, latindo alegremente.

Nem no cinema vi um bote tão preciso e calculado. Genoveva transpôs a distância de cinco mesas duplas num pulo só. O salto foi sem impulso! No afã de ir ao encontro de sua dona o pequeno cão recebeu uma patada no pescoço e começou a ganir. Genoveva não miou, apenas deu um rosnado. E os dois embolados justamente no intervalo da minha mesa e da que ficava imediatamente à direita. Em briga de animais, não adianta querer segurar nenhum dos dois. Só água fria ou extintor de incêndio com gás carbônico são capazes de separar uma briga dessas. Apavorada, a senhora que havia assumido inteira responsabilidade pelo que pudesse acontecer, tentou, em vão, pegar com as mãos o seu querido pet. Levou algumas arranhadas superficiais em ambos os braços, cheios de pulseiras. Do lugar onde eu estava, peguei a metade da água que ainda estava na garrafa e joguei sobre os três, gata, cachorro e dona. A água saiu aos poucos da garrafa. Então peguei o balde que estava com metade de água bem gelada e metade ainda com gelo, e apenas virei no bolo formado. Genoveva saiu correndo para o ninho onde estavam seus filhotes. O cachorrinho, agora no colo ensangüentado da dona, apenas chorava e gania. A insistente senhora, virou-se para mim, com lágrimas nos olhos e pediu desculpas pelo acontecido, jurando jamais levar o cachorrinho a restaurante algum. As crianças, chocadas, e as tias-avós, saíram cabisbaixos pelo vexame ocorrido por teimosia. A dona do cachorro foi prontamente assistida, da melhor maneira possível, com guardanapos limpos trazidos pelo garçom, que tinha, silenciosamente, nos olhos a expressão: “Não disse?”. Enquanto ajudávamos a senhora a se enxugar, percebemos que, além da água, gelo e sangue do cachorrinho e o dela, havia também uma boa quantidade de urina. Até hoje não sei de quem era, se do yorkshire, ou dela. Ela pagou a conta, e ainda deu uma generosa gorjeta ao garçom que os atendera. Para mim, fez apenas um aceno de que reconhecia ter sido mais teimosa do que deveria.

Após este incidente, voltei para Brasília, dias depois. Não recebi correspondência alguma a respeito do fato. Mas soube, por telefone que Genoveva havia sido doada para uma cliente antiga da casa, que adorava de siameses a gatas de telhado e não suportava cães.

Passados quase trinta anos, Genoveva deve estar no Céu dos bebuns, acocorada no colo de Ratinho, ou ao lado de Barbado que bebia chope, entrava na hora certa em cena, mas não latia, enroscando-se nas canelas perfeitamente torneadas da felina-mor, a pantera Leila Diniz, diante de cuja beleza, assunto algum se esgota....