Saudades do que não vivi

Saudades do que não vivi

Fred d'Orey.

Apesar dos meus 40 anos de vida e 30 de surf, não fico nem um pouco melancólico quando lembro das coisas que vivi na praia. Folhear álbuns antigos de fotos e assistir aos meus filmes da década de 80 me dão o maior prazer, nunca tristeza. Não sou saudosista. Não entro nessa de que "na minha época era muito melhor". Outro dia, pensando nisso cheguei à conclusão de que tenho mesmo é saudades do que não vivi. Não chega a ser um caso grave de ansiedade. Não deito no divã do analista e fico remoendo emoções projetadas. Só acho que cheguei atrasado pra festa em pelo menos uma década. Queria ter curtido algumas coisas, surfado algumas ondas, conhecido alguns lugares numa outra época que não a minha.

Por exemplo, ser adolescente e goofy no North Shore do final da década de 60 deve ter sido um delírio. Neguinho passava batido por Pipe porque a consideravam insurfável. Volta e meia alguém caía e invariavelmente esse mesmo alguém voltava com a prancha partida ao meio e com areia no mais remoto dos orifícios. As pranchas não ajudavam, eram uns tocos, grossas e pesadas. Com a extinção dos pranchões e as guns tomando conta do planeta, uma nova geração passou a cobiçar aquela esquerda impossível. Adeptos da teoria de quem checa mais surfa mais (e melhor), uma galerinha de fronts pra esquerda passou a rondar o Ehukai Beach Park, tentando entender o drop, a cavada e como fazer pra chegar ao canal. Só havia uma maneira, por dentro. Essa turma, da qual Gerry Lopez foi o maior expoente e maestro, praticamente inventou o tubo. Fico imaginando a camaradagem, as ondas só pra eles, os finais de tarde épicos. Minha primeira temporada no Hawaii foi em 80, e hoje tenho a certeza de que cheguei dez anos tarde demais. Os bárbaros já haviam tomado conta e a hostilidade prevalecia.

O Píer de Ipanema era tabu absoluto pra um pirralho como eu. Meu pai proibia andanças por lá. "Muita droga e uma gente estranha", ele dizia. Eu não sabia o que era droga, mas não achava nada de estranho naqueles sorridentes cabeludos. Na verdade eu queria ser como eles. Os caras tavam sempre rodeados de meninas lindas, pranchas fincadas na areia, uma viola aqui, um chapéu de palha ali. "O que pode haver de errado nesse astral?", eu me perguntava sentado ao longe. O Píer, que durou de 69 até meados de 73, abrigou, nas mesmas areias, intelectuais, artistas e surfistas. Foi ali que Caetano se apaixonou pelo "Petit" e fez dele "Menino do Rio" em versos de sua famosa música.

Fred d'Orey.

Foi bom pro surf esse banho de cultura. Mas o melhor é que o fundo do Píer era perfeito e dava muita onda. Mas muita mesmo. Onda forte, double up implacável. Foi essa a escola do Pepê, e que o ajudou a tirar de letra os drops atrasados de Pipeline, colocando-o na final do Pipe Masters de 76. Nas vezes em que me arrisquei a ficar de castigo, e fugi pro Píer (meu pico era o Arpoador), quando não ficava embasbacado com os mais velhos surfando aquelas ondas grossas, estava na beirinha pegando espumas. Anos mais tarde, já com os pilares desmontados, sentei naquelas mesmas dunas e fiquei me imaginando dropando uma esquerda imaginária num Pier que não mais existia.

Comparar a minha adolescência de surf em Ipanema e Prainha, com suas ondas meia bomba, com a do australiano Rabbit Bartholomew chega a ser piada. Todo dia, pra chegar à escola, Rabbit passava andando por Kirra, uma direita fenomenal, alinhada, tubular. Quando ele tinha uns 13 anos, Rabbit surfou 40 dias de Kirra épico 4-8 pés, com swell produzido por um festival de ciclones em alto mar. Quarenta dias! Dançou na escola, lógico, mas acabou virando campeão mundial em 78. Nesse mesmo ano Saquarema já não era mais a mesma. Considero 74-76 a época de ouro. Uma vilazinha de pescadores sonolentos com altas ondas, próxima ao Rio, onde alguns cariocas como Bocão, Paulo Proença, Otávio Pacheco, Penho, Maraca e Berenguer, fizeram de Saquá a Woodstock brasileira. Um oásis alternativo dentro de um país ultra careta.

No final da década de 70 Bali também já tinha dançado. Alguns poucos anos antes ainda era possível surfar Uluwatu sem crowd, sem locais, sem lixo. Padang ainda era um secret. Kuta Reef ainda não havia sido invadida por japoneses de excursão. O ritmo era outro, muito mais "balinês". Acho que é isso. Toda vez que um lugar perde seu "coeficiente balinês" de tranqüilidade e ausência de ansiedade ele deixa de brilhar um pouco e inicia sua longa decadência. No frenesi acelerado em que vivemos é impossível congelar qualquer lugar no tempo e no espaço. Pena.

Texto extraído do livro "Outras Ondas", de Fred d'Orey, que autorizou sua publicação.

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