A pantera Leila Diniz e o Barbado do Restaurante Jangadeiros

A pantera Leila Diniz e o Barbado do Restaurante Jangadeiros

Alexandre Franco Sandy.

Ao falarmos em pantera, pode ser que nos venha à mente a figura de mulheres bonitas da alta sociedade, como era de hábito Ibrahim Sued usar em suas metáforas. No meu caso particular, cada vez que falo em pantera, me vem à mente a imagem mais do que felina de Leila Diniz, inesquecível com sua beleza rara e cativante. Ainda criança, sem saber ao certo o que era sensualidade, eu vislumbrava naquela nereida formosa, de contornos perfeitos o que, mais tarde, viria a aprender como sendo feminilidade. Mesmo com a pureza de criança, mas já despontando um bom gosto latente, quando eu via Leila, o mundo ficava paralisado ao seu redor. Agora não é metáfora, é literal: Leila conseguia paralisar tudo e todos ao seu redor. Que mulher bonita!

A rua que inspirou meu avô, depois que o Rhenânia foi destruído pelos nacionalistas mais exaltados, a dos Jangadeiros, era muito mais residencial do que comercial. Havia, no entanto, um minúsculo teatro, que de tão pequeno era chamado Teatro de Bolso, bem de frente à Praça General Osório, onde Leila começou sua carreira como atriz. Ali também era um reduto da liberdade e, portanto, da boemia, duas palavras que, não só em Ipanema, e nem só na década de 60, andaram sempre juntas: boemia e liberdade. Várias peças foram encenadas no Teatro de Bolso. Evidentemente que, sendo criança, oficialmente eu não poderia sequer chegar perto, quanto mais assistir a um dos espetáculos ou filmes ali exibidos. Mas como eu era “da casa”, havia vezes em que eu ia para a saletinha de iluminação e projeção, e, dali, me deliciava com as peças e com a beleza estonteante da pantera.

Não me recordo com exatidão do nome de uma determinada peça, que eu não assisti (nem da saleta de projeções), mas que foi muito comentada durante décadas, chegando a entrar nos anais da história de Ipanema, por causa de uma cena inusitada. No enredo da peça havia uma cena em que um cachorro atravessava o palco, sincronizadamente após um comando de voz, era a deixa em linguagem teatral, para que o cão fizesse sua aparição. Mas aí veio o problema: que cachorro-ator poderia desempenhar aquele papel aparentemente simples, mas que na realidade era dificílimo? Sim, pois seria um problema ter que adestrar um cão só para isto. Tanto o diretor, quanto contra-regras e equipe de apoio, além do elenco, ficaram num tremendo dilema, a ponto de cogitarem o corte desta cena importante.

Nesta época, um habitante das ruas ipanemenses, um cachorro vira-lata, de porte médio para grande, que atravessava a rua Visconde de Pirajá, então de mão dupla e com bondes, com maestria e responsabilidade, olhando para a esquerda e para a direita, antes de dar o primeiro passo, de pelos acinzentados, longos, mal tratados, sujos e que frequentemente era visto entre as mesas que se situavam na calçada em frente ao Jangadeiro, foi aventado para desincumbir a tarefa de atravessar o palco, mas no momento certo, quando da deixa de uma das falas do texto. Como era um morador de rua e seu pelo era longo, foi apelidado de Barbado, com o tempo chegando até a atender mesmo por este nome a quem o chamasse, desde que fosse pessoa conhecida. Barbado tinha um bom relacionamento com os vários segmentos de freqüentadores boêmios do Janga, era manso e dócil, e acompanhava muitos bebuns, já de madrugada, até suas respectivas casas, pelo menos até às portarias dos prédios onde moravam os que se excediam no álcool. Ele fazia parte da turma. Era alimentado com restos de filé, pizza, peixe e até frango com osso (sem se engasgar), jogados à beira da calçada pelos habitués do bar.

Pelo que o ator Antônio Pedro me falou, ali estava a solução para o problema, mas esta solução gerava um outro problema: Barbado atendia pelo nome, desde que o chamassem de Barbado. Tinha desenvoltura e finesse, mas teria que atravessar o palco no momento certo, quando da deixa que fazia parte do diálogo da peça. Só que o Teatro de Bolso era mínimo, não se podia, mesmo que sussurrando, chamar Barbado pelo nome, pois fatalmente este sussurro seria escutado pela platéia, fato que não poderia acontecer. Havia ainda um outro problema subjacente, como garantir a presença de Barbado assiduamente à hora em que a peça fosse encenada, nas noites de espetáculo, se ele era um vira-lata de rua?

Para todo problema há solução. Seguindo à risca a sugestão dada por algum biriteiro do elenco: antes de a peça começar, alguém da equipe teria a incumbência –fácil – de, primeiro, localizar Barbado, e atraí-lo para o Jangadeiro, onde seria mantido à base de mimos. Degustando pedaços de filé, peixe, pizza (esta tinha que ser de alicci ou de alcaparras) angariados junto aos fregueses que jantavam nesse horário, Barbado ficava entretido. Assim que a peça começasse, levava-se o cachorro até o Teatro de Bolso, o que também não era complicado. A mesma pessoa encarregada de levar Barbado ao Teatro, deixava-o aos cuidados da equipe que o introduziam na coxia, local em que se sentia muito à vontade, pelos carinhos que recebia. Neste ínterim, a pessoa que o havia levado ao teatro voltava ao Jangadeiro e providenciava a “varinha de condão” que faria a mágica da cena dar certo.

Apenados com a mascote dos boêmios, após lhe darem de comer, habitualmente, os amigos de Barbado não lhe davam água, mas sim chope, que era servido numa vasilha metálica exclusiva do cão amigo. Esta vasilha era a “varinha de condão”. Ela era levada ao teatro enquanto Barbado ficava à espera da deixa. Neste momento, a vasilha, com chope evidentemente, era passada da bilheteria para o lado da coxia que seria o destino do passeio canino pelo palco. Aí estava o segredo do timing e da assiduidade do cão-ator, que jamais faltou a um espetáculo enquanto fora encenado.

Barbado viveu nas ruas próximas à Praça General Osório durante anos, sempre alimentado com restos de comida de “bacana”, regada a chope gelado, de primeira qualidade, com pressão, isto é, com espuma, como se deve servir um verdadeiro chope. Acredito que Barbado esteja no Céu dos bebuns, fazendo companhia aos que lá estão. Causa-mortis? Possivelmente velhice abreviada por cirrose hepática.... Mas deve estar feliz, pois certamente fica o dia inteiro aos pés da pantera Leila!

Alexandre Franco Sandy

Alexandre Franco Sandy

Alexandre Franco Sandy